Sobre sonhos, promessas quebradas e cacos de vidro

Vivíamos um sonho irrealizável. Um delírio borbulhando em cascatas de uma afabilidade terna e quase estridente. Você partiu, eu me fui. Você se foi, eu me parti. Um jeito aprazível de sangrar. Vertentes escarlates de você. Um corte que não cicatriza e que vaza em torrentes. Cascatas de uma ferida pungente, mas suave. Sua lembrança é suave. Apesar da dor. Apesar do sonho fragmentado. Ilusões frágeis como vidro.

O vidro que reflete o interior. Vazio? Um imenso vazio preenchido por si mesmo. Memória inefável, sombra do que não foi, poderia ter sido, mas logo se esqueceu. Você se esqueceu. Esquecemos. Esqueçamos. Já não importa muito. Apesar do relativismo do importar. Apesar do sonho arrasado, mas almejado. Vidro partido, coração ferido. Cacos de uma alma dilacerada.

Coração em frangalhos por crer em promessas feitas com uma mão na água e um pé no fogo. A chama que não tardou a nos consumir. Incendiar às vezes é melhor do que confrontar. Ilusões não são assim tão fáceis de desfazer. Melhor esquecer? Eu me esqueci. Esquecemos. Esqueçamos. Me esqueça. Me faça esquecer e juntar os cacos para recompor o fantoche vítreo.

Vivíamos um sonho denso, cintilante, feérico. Efêmero, débil, demasiado. Ilusório. Esplêndido, mas cruel. Crueldade sem beleza. Aquela beleza das flores coloridas e perfumadas. Um sonho mais como um jardim cinzento e frio. Como a vida. Como o mundo. O nosso mundo criado pela minha esperança. Promessa feita com uma mão na mente e os dois pés no coração.

Falar de corações é como um dia de chuva. A indiferença caindo em gotas parcas para logo tornar-se uma tempestade de mágoas. Enxurrada de emoções distorcidas, um céu coberto por angústia; a angústia luta para dissipar as nuvens apáticas e trazer a luz. Mas a luz vem apenas para ofuscar o sonho. Sonho perdido na névoa que se afasta para trazer o conforto dos iludidos. Insolação de empáfia.

Falar de corações é como vagar. Cruzar os vales sombrios com a indissolúvel esperança do fulgurar de um horizonte. Um horizonte que agora parece tão distante. Distante como a sua memória. Aos poucos ela se esvai. Não quero perdê-la, mas o fluxo é irrefreável: cascatas de um amor desesperado que vaza dos meus pulsos para seu coração. Falar de corações é como planger pelo inevitável: o amor rejeitado espalhando-se pelo chão, sem vasilhas para recolhê-lo ou bálsamos para amenizar a ferida inestancável.

Vivíamos um sonho. Um sonho que, de reluzente e caloroso, transformou-se em obnubilado e gélido. Um sonho que, de equânime e fraterno, passou a unilateral e aversivo. Um sonho feito de cacos de uma confiança destroçada. Os destroços aqui, digladiando por ar. Ar cada vez mais escasso. Essa é a essência dos sonhos: a escassez do sentir. E agora só o que sinto é aquela cascata de uma deslealdade perversa e quase sufocante. Nós nos fomos, eu me parti. Em mil pedaços. Um jeito sublime de sangrar. Vertentes escarlates de mim. Um corte que não cicatriza e que vaza em torrentes. Cascatas de uma dor impassível, mas necessária. Sua lembrança é necessária para viver. Apesar do flagelo que é lembrar seu toque. Apesar do sonho cálido, que em breve será enterrado. Ilusões frágeis do desejo.

7 Responses to Sobre sonhos, promessas quebradas e cacos de vidro

  1. Lina Carolina disse:

    Ramiro cada vez se aprumando mais na descrição de emoções e sentimentos. É a alma colocada em forma de texto Parabéns mais uma vez!

  2. Marli Torres Guareschi disse:

    Ramiro, parabéns pela maneira que você usa as palavras para fazer-nos refletir a vida, nossos abalos,nossas sensações.

  3. Jonas Lupus disse:

    D:

    Pera que eu tenho que ler isso de novo. E de novo.

  4. Este texto expressa exatamente o que estou sentindo !!

  5. Raquel Machado disse:

    Nossa, muito bom esse seu texto! Adorei de verdade.

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