Sobre culpa, medo, religiões e demônios

domingo, 23 janeiro, 2011

O começo da minha relação com religiões – mais especificamente com a católica – provavelmente se deu no momento do meu batismo. Sendo filho de ateus, creio que o fato de minha avó materna ter sido católica devota se relaciona com a história; ou talvez meus pais tenham cedido àquele famigerado jogo social. Não importa. Os anos foram passando. Minha infância foi razoavelmente tranquila, e dela guardo algumas de minhas melhores memórias. Então, chegou aquela idade em que em geral se jogam as crianças numa igreja, a fim de, se não iniciar a doutrinação, reforçá-la. Quem tomou a iniciativa desta vez não foram meus pais. Foi minha irmã. Religiosa, à época, um belo dia me informou: “Tu vai pra catequese”. Indaguei o porquê. “Porque todo mundo faz”. E eu, subserviente, fui e fiz.

Na catequese, aprendi sobre um certo deus; sobre como ele era bom e justo e como eu deveria amá-lo e cultuá-lo. Mas o que ficou incrustado em mim foi algo cuja autoria é disputada entre judeus e cristãos. Estou falando de culpa. Porque, obviamente, a culpa é um dos pilares básicos do cristianismo. Como disse na época do colégio um grande professor de literatura, tirem a culpa e acaba o cristianismo. Antes que me apedrejem, friso que a culpa, sozinha, não baliza o sistema cristão; não esqueçamos o medo, a dor e a vergonha. Mas a culpa sobressai a todas as outras. Porque a culpa prende, tortura e se arraiga de tal forma, que é uma tarefa penosa extirpá-la.

Penosa, mas não impossível. Passei um tempo considerável carregando esse estigma, e não era muito difícil notá-lo. Ao que me parece, a catequese não cumpriu seu objetivo: me fazer amar aquela entidade enigmática e singular. Porque nunca, por um momento sequer, eu cheguei perto de amar deus, Jesus ou o nome que quiserem dar ao seu amigo imaginário pós-infância. Ou talvez, quem sabe, todo o parlatório cristão tenha atingido sua finalidade. Afinal, por uns três anos levei comigo o medo. Medo dos castigos que certamente me seriam infligidos pela mão de ferro de deus. Um deus que eu não amava, mas no qual cria cegamente. E cuja igreja impôs sobre uma criança de onze anos algo tão pesado como culpa, pois quem não ama a deus deve senti-la e, ora, o ser humano é pecador por essência, então nada mais natural do que se culpar. Pelo quê? Sinceramente, não importa. Mas não esqueça que você é um pecador e deve sofrer, já que a vida terrena é feita de labuta e dor e vergonha; a recompensa virá no reino dos céus.

Como me livrei da culpa? Não sei bem. Mas algo é certo: até lá, os suplícios foram inúmeros, as dores, praticamente insuportáveis; e a vida de repente se tornou mais áspera, empanzinada com sofrimento e sangue. Sim, não pensem que a tortura se restringiu ao plano psicológico. Eu descontava em meu próprio corpo tudo aquilo que a mente não conseguia administrar. E isso foi o início de alguns grandes transtornos que a Igreja Católica ajudou a desencadear.

Não, nem tudo é culpa do catolicismo e da doutrina cristã. Mas, bem, o conceito de “culpa”, como disse anteriormente, é obra judaico-cristã. E foi justo o catolicismo que ajudou a levantar coisas que até então permaneciam lá no fundo, num recôndito obscuro e que, não fosse essa “ajuda”, talvez nunca tivesse se manifestado. Mas se manifestou. E aí?

Chegou uma hora em que as coisas foram mudando. Não me sentia mais tão ligado à ideia de deus. Foi então que eu experimentei estudar outras religiões. Por curiosidade. Queria me ver afastado daquela visão cristã. Conheci a wicca, os cultos neopagãos e o satanismo moderno, que nada têm a ver com os clichês que a mídia ajuda a disseminar. Aí eu comecei a perceber um detalhe interessante, curioso. Veja só: aos poucos, mais lentamente do que eu gostaria, fui me dando conta de que eu não acreditava naquilo tudo. Era diferente, instigante, mas… não era real. Deus, diabo ou qualquer entidade mística. O que seria deus se não uma válvula de escape, algo no qual se apoiar? Eu não precisava daquilo. Que deus deixaria desamparada a sua criação?

Pois é, o cristianismo se foi de dentro de mim. Porém, deixou marcas. Não foi exatamente fácil combater a culpa: por mais que agora não houvesse um deus para fomentá-la, ela continuava ali. E expurgá-la me exigiu demais. Todos temos nossos demônios, não? “Meus demônios permanecem diante de mim e debocham de cada pensamento meu; o único jeito de limpar minha alma é afogar minha sujeira com chuva.” O trecho anterior é de uma música da banda americana Novembers Doom, e me faz pensar o seguinte: há demônios dentro e fora de nós.

Às vezes, os de fora podem ser tão perigosos quanto os de dentro, ou ainda mais. Da mesma forma que eu fui afetado pela doutrinação religiosa, muitas outras pessoas foram, são e serão. Não acho cabível impor determinada religião a crianças; como Richard Dawkins bem disse, não existem crianças católicas, judias ou muçulmanas – os pais destas é que pertencem às ditas religiões e acabam não dando escolha aos filhos. O pior disso tudo é que nem sempre a imposição é feita de modo sensato (como se pudéssemos usar a palavra “sensatez” conjunta com “imposição”, ainda mais religiosa). Muitas crianças são criadas desde cedo num ambiente de fanatismo completo. E o resultado disso nós podemos atestar diariamente. Acho que não preciso dar exemplos.

Me parece que as religiões são a mácula do mundo, e o cristianismo, por ter papel tão influente no mundo ocidental, acaba sendo mais prejudicial na nossa realidade. No Brasil, por muito tempo tivemos uma predominância da Igreja Católica, que ainda retém considerável poder entre os fiéis. Acontece que, de uns anos para cá, observa-se o crescimento das diversas formas de protestantismo. Evangélicos e católicos se digladiam em diversos aspectos, mas em outros, se unem sem pensar duas vezes.

E voltamos ao fanatismo. Porque muitas vezes fica difícil separar o fanatismo da religião; em boa parte dos casos, andam de mãos dadas, e não se sabe onde termina um e começa o outro. Não condeno os religiosos em suas pessoas, mas suas atitudes. Sei que existe uma pá de gente sensata, respeitosa e com mente aberta, sem deixar de ter sua fé e praticar a religião. Meu desejo sincero é de que fossem maioria. Mas não são. E a parte fundamentalista faz barulho. Ataca os direitos de outros para garantir os seus. Difundem toda sorte de preconceitos. Quando isso vai acabar?

Infelizmente, não enxergo um horizonte favorável. Ninguém deixa de ser fundamentalista da noite para o dia. Ninguém passa a ter empatia e respeito assim, do nada. Um diálogo como esse é sempre árduo de construir. Eu poderia ficar quieto, acomodado e prostrado em meu canto. Mas estou aqui, compartilhando minha experiência de vida. Me empenho em estabelecer discussões, debates e questionamentos. Autoquestionamento. Vivo numa sociedade pautada pela moral judaico-cristã, e acho que o parâmetro de ética e moral deve ser alterado o quanto antes. Porque enquanto houver extremismo religioso, não teremos muitos dos avanços do qual o mundo necessita. Enquanto a ignorância e a cegueira imperarem, a luz da razão ficará ofuscada. E enquanto a situação não for modificada, haverá outras crianças de onze, treze anos se martirizando por uma culpa risível, por um deus tão certo quanto a existência de fadas.